Washington Novaes - O Estado de S.Paulo
Começa a tomar corpo em áreas da comunidade científica, do jornalismo, das artes, do Judiciário, além de organizações não governamentais, um projeto de levar à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) uma proposta de reconhecer o Parque Indígena do Xingu, que está completando 50 anos, como patrimônio histórico, cultural e ambiental da humanidade. Nada mais justo e necessário para essa área de 2,6 milhões de hectares (26 mil quilômetros quadrados), criada no governo Jânio Quadros, em 1961, por proposta dos irmãos Villas-Bôas, onde vivem 16 etnias e há vestígios documentados de ocupações e culturas há mais de mil anos. Mas essa grande ilha de conservação ambiental e cultural, em Mato Grosso, corre riscos muito graves, por estar no meio de um território devastado pelo desmatamento e pelo avanço das culturas de grãos e da pecuária.
A proposta tem apoio explícito, entre muitas figuras, do ex-ministro Gilberto Gil, do artista plástico Siron Franco, do ex-presidente da Funai Márcio Santilli (que já coordenou pelo Instituto Socioambiental o projeto Ikatu, de iniciativas para proteger as bordas do parque). Muita gente. Mas está esbarrando num ponto crucial: para ser examinada e aprovada pela Unesco a proposta precisa ser encabeçada pelo governo federal. E algumas áreas do governo resistem, por entenderem que o reconhecimento implicaria "restrições à soberania nacional", já que implicaria obrigações em relação ao parque e proibição de certas atividades que possam ameaçá-la (por isso não há no Brasil nenhuma terra indígena demarcada protegida pela Unesco).
É o mesmo caminho que, em 2002, impediu, por exemplo, que se construísse um capítulo sobre clima e meio ambiente na Agenda 21 nacional. Na ocasião, o representante do Itamaraty na comissão da Agenda declarou ali, explicitamente, que esse tema era "privativo do Itamaraty e da área de segurança nacional, porque implica restrições à soberania nacional". Em 2003, apresentada de novo a proposta à comissão da Agenda 21 e por ela aprovada, foi novamente esquecida.
É pena. Porque, à medida em que avança o cerco da produção sobre o Xingu, cresce o risco de transformação dessas culturas. Os jovens, até por causa do contato frequente com pessoas de fora do parque, e com ajuda da educação bilíngue (português e língua originária), que lhes permite assistir à televisão, querem todos os objetos e modos da cultura branca. Não querem ser pajés - e sem estes se esvaem os fundamentos de uma cultura toda regida por espíritos, que traduz seu respeito a essas entidades em cantos e danças, pinturas e adornos corporais; e todo um modo de viver.
Como já registraram tantos antropólogos, são culturas em que não há delegação de poder, em que o chefe não dá ordens - ele é o mais informado, o que melhor conhece a história de seu povo, sua divisão do trabalho; é o grande mediador de conflitos, o que fala melhor, o que mais sofre; mas não dá ordens. E cada indivíduo na aldeia é autossuficiente, sabe fazer tudo o que precisa para sobreviver, sua casa, sua lavoura, seus objetos úteis e de adorno, sabe caçar e pescar, não depende de ninguém para nada. E ali a informação é aberta, o que um sabe todos podem saber. Então, sem delegação de poder não pode haver repressão organizada, dominação de um indivíduo ou um grupo por outro indivíduo ou outro grupo - ainda mais quando são todos autossuficientes e igualmente informados. E esses indivíduos ainda são capazes de identificar na natureza o que lhes pode ser útil. Por isso é importante para eles preservar o seu entorno, não sobrecarregá-lo: sempre que uma aldeia atinge algumas centenas de moradores, ela se divide e uma parte deles implanta, longe, um novo aglomerado. Muita sabedoria, muitos luxos.
A sofisticação pode ir ainda mais longe, como gostava de contar Orlando Villas-Bôas, que ali viveu durante décadas e falava com admiração de certos ângulos da relação homem-mulher. Os casais são livres para se juntar e separar, só depende deles, não há reprovação social. Mas se um homem não estiver satisfeito com sua mulher - porque ela, por exemplo, não está trazendo para casa água limpa, o que é tarefa da mulher na divisão tradicional do trabalho ali -, ele não vai sequer se queixar à mulher; porque ela trará água se quiser, e não por direito do homem; e a queixa implicaria reconhecer um direito masculino - que não existe. O máximo que o homem poderá fazer é contar aos homens mais velhos. Que reunirão todos os homens e todas as mulheres e explicarão como se deu a divisão de trabalho entre eles, porque tais tarefas couberam aos homens, porque outras couberam às mulheres. E a mulher que não traz água, "se quiser, enfia a carapuça", dizia Orlando, "se não quiser, não enfia, separa-se, faz o que quiser". Sem recriminação social. Muito sofisticado.
É de utopias como as do Xingu que a nossa cultura se afastou e precisa cada vez mais ouvir os sinais - de uma sociedade tão consciente de seus direitos e deveres que não precisa receber ordens; de uma sociedade em que os indivíduos são autossuficientes, não dependem de ninguém e são capazes de conservar o seu entorno; de uma sociedade com a informação aberta, na qual o que um sabe todos podem saber. Não voltaremos a ser índios, até porque não temos competência para tanto, mas podemos aprender com eles. "Homem e natureza são casados. É o único matrimônio indissolúvel que conheço. Dissolvido este casamento, o homem tomba num exílio feito de poeira amarga e estéril", escreveu o saudoso psicanalista Hélio Pellegrino num livro de homenagem ao médico Noel Nutels, que dedicou sua vida aos índios, inclusive do Xingu.
Se é assim, precisamos pelo menos ajudar a manter um espaço único como o do Parque do Xingu e as culturas que ali sobrevivem. Um projeto como esse, se levado à Unesco, pode ter um papel fundamental nessa direção.
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